Postado em 13 de Abril de 2018 às 16h22

Arlene Renk

Voz do Autor (36)

Estudar as minorias regionais, no Brasil, serve como um microcosmo da realidade social de todo o país. É o que mostra a antropóloga Arlene Renk, entrevistada dessa semana na coluna A Voz do Autor. Doutora e Mestre em Antropologia pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, e graduada em Letras pela Universidade Federal do Paraná, hoje Arlene atua como professora titular da Unochapecó, instituição que a acolheu e cuja editora, a Argos, publicou a maioria dos seus livros.


Em nossa conversa, a autora comenta sobre as motivações por trás de sua pesquisa em torno da ocupação do oeste de Santa Catarina desde a colonização, revelando os grupos marginalizados que povoaram a região e ajudaram a construir a identidade local.

A senhora é autora de uma vasta bibliografia, tendo publicado muitas obras pela Argos, além de ter contribuído com artigos para diversos outros títulos da mesma editora. Sendo assim, pesquisadores possuem múltiplos motivos para continuarem a produzir conhecimento constantemente. E a senhora? O que a motiva a continuar pesquisando e escrevendo livros?


Em primeiro lugar, a bibliografia não é vasta. Tenho publicado livros cuja temática tem como mote uma região e um fio puxa o outro. Quando iniciei, há algumas décadas, havia muito pouco a esse respeito. O trabalho inicial foi a investigação a respeito da população cabocla, autóctone na região [do oeste de Santa Catarina] e expropriada como processo de colonização. O objetivo foi tomar o itinerário de descenso do camponês expropriado a extrator de erva-mate. Ressalto que a extração da erva-mate consiste na hierarquização das atividades laborativas, a mais baixa das atividades e um ofício étnico, à medida que é recusado pelos demais grupos [que habitam a região]. Trata-se de uma atividade sazonal, remunerada por tarefa e [o camponês] desloca-se a centenas de quilômetros no interior do estado com a família, em condições precárias. Se esse foi o fio condutor, levou-me a outros caminhos, como a legalização das terras por ocasião da lei nº 601/1850, assunto que não era mencionado, porque o marco zero da “civilização” era tão somente o processo de colonização a partir da década de vinte do século passado. Nessa tapeçaria, foi fundamental recorrer à história oral, de modo que abriu frentes de trabalho para mim e para outros profissionais, colegas, mestrandos e graduandos. As possibilidades nas diversas áreas de conhecimento fazem os nexos com as problemáticas da contemporaneidade, sejam os grandes projetos de desenvolvimento, tais como os de barragens, as publicações tendem a crescer, seja em forma de artigos ou livros. Motivação? A cada momento estamos, literalmente, decifrando a região, elementos que permitem novas leituras, que são “descobertos”, porque nós obliteramos aspectos contemporâneos que imaginávamos serem do passado. Mais do que isso, porque contribuímos igualmente para “denunciar” a faceta de etnocentrismo muito presente em nossos dias.


Há um tema comum em seus livros, como “A Luta da Erva” e “Sociodicéia às avessas”, assim como em “Narrativas da diferença”, que é a influência de grupos historicamente marginalizados na construção da identidade regional em Santa Catarina. Por que você acredita que é necessário estudar essas minorias para compreender socialmente nossa realidade?


É imperioso que se estude as minorias étnicas, de gênero e outras construídas, porque foram e são naturalizadas. A naturalização é um instrumento de violência disseminado na sociedade. A desconstrução, apontando as raízes, como foram gestadas, como são exercidas, levam, no mínimo, ao questionamento e à possibilidade de trabalhar os temas e colocá-los à mesa, dando um estado de legitimidade. Veja, no caso da “Sociodicéia”, o trabalho centra-se na família, em especial nas mulheres, no qual tenta-se recuperar os padrões de herança, dos quais foram as vítimas estruturais. À revelia do Código Civil foram deserdadas pelas famílias, enquanto padrão de herança naturalizado. De outro lado, as teratologias sofridas foram severas. No entanto, tanto nesse livro quanto nas “Narrativas” há também relatos desses grupos terem, ao menos em parte, encontrado seus caminhos para autonomia. Melhor dito, terem construídos suas alternativas.


Sem estudar as minorias não há como entender a sociedade. Ressalto que não podemos ser míopes e deixar de lado as camadas dominantes. Ao estudá-las, aprendemos muito nas suas dobras. O perigo do olhar torto nos levaria à visão fragmentada. Os romanos já diziam que Jano tinha duas faces. Hoje muita coisa mudou. A realidade tem múltiplas faces. Depende do nosso viés teórico, do problema que formulamos e da interação com o real, porque as minorias, os grupos, o nome que possamos atribuir não são ossificados, têm suas fraturas, reinventam suas tradições, mas também estabelecem suas alianças, fazem suas conversões, constroem propostas de autonomia, algumas bem-sucedidas, outras nem tanto. Eles são o retrato, ou, melhor dito, são a sociedade brasileira.

 

Por fim, o caso do povoamento de Santa Catarina, extensamente tratado em suas obras, pode ajudar a explicar outros processos de ocupação territorial no Brasil? Você acredita que um caso regional ajuda a entender o todo?


Sem dúvida, o regional, apesar de suas especificidades, permite compreender o processo nacional. No século XIX, com a ocupação dos campos de Palmas, escreveu o historiador que o evento não ocorrera antes por várias razões, dentre as quais, pela falta de “povoador branco”. Instaura-se a grande propriedade e a sua população dependente nas áreas de campo. E a colonização, nas áreas de mato, no século XX, é feita com descendentes de europeus em pequenas propriedades. Neste caso, o modelo é o da política de imigração e colonização. Os processos subsequentes ocorrem no regional, tal qual no nacional. Ousaria dizer que se transforma em laboratório. Vejamos, estamos no coração do agronegócio exportador de proteínas de carnes e também fomos “contemplados” com grandes projetos de engenharia, a explorar os recursos hídricos, como ocorre nas diversas partes do país. Estudando esses eventos dialogamos com aqueles ocorridos no país e fazemos as amarras. De outro lado, essa região foi a exportadora de agricultores para aquelas do centro-oeste do país, num processo de reprodução social camponesa. Muitos desses hoje figuram no agronegócio, fizeram a reconversão.

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