“Entre ilustres e anônimos”, um dos mais recentes lançamentos da Editora Argos, aborda a temática da concepção de história em Machado de Assis. Veja, a seguir, uma entrevista com a autora acerca da obra. Quando e onde surgiu a vontade de estudar este personagem (Machado de Assis) tão importante na literatura brasileira? O desejo de estudar Machado de Assis surgiu no final da graduação em História, lá em 2002. Então, eu estava às voltas com a escolha de um objeto para minha monografia de conclusão do curso e muito interessada na questão das relações entre história e literatura. Naquele momento, essa discussão estava na ordem do dia dos historiadores e associava-se a um problema novo: não o do uso da literatura como fonte para o historiador, mas o apontamento do caráter textual do saber histórico. Chamava-se a atenção para o fato de que o conhecimento histórico é uma narrativa, o que conduziu a questionar a ideia de uma oposição muito marcada entre história e literatura. Então, com a inexperiência própria dos que estão começando, minha intenção era associar os dois aspectos dessa relação entre elas – o uso da literatura como documento e a questão da narratividade da história –, e foi nesse sentido que me voltei para Machado de Assis. Fazendo uso de uma expressão do próprio escritor, eu procurei mostrar que ele poderia ser visto como um “historiador contador de histórias”: alguém que contava a história – no caso, a história da escravidão no Brasil – de um modo distinto dos historiadores, focalizando aspectos do mundo escravista que não eram levados em conta pela historiografia de cunho econômico que tivéramos até a década de 1970. Havia, assim, a ideia de que a literatura permitiria enxergar aspectos negligenciados do passado e, portanto, a aceitação sem problematização – conforme vejo hoje, olhando retrospectivamente – da ideia de uma clarividência do escritor em relação ao seu tempo, como se ele fosse alguém que pudesse enxergar os problemas de sua sociedade melhor do que outros o fariam. Era um trabalho muito influenciado pelas análises que os próprios historiadores, entre eles Sidney Chalhoub, estavam fazendo – tanto da escravidão quanto da literatura de Machado de Assis. Depois, minha intenção era continuar estudando a ordem escravista a partir da literatura machadiana, mas dois encontros me desviaram desse caminho. O primeiro foi com uma crônica do próprio Machado de Assis, conhecida como “O punhal de Martinha”, datada de 5 de agosto de 1894. O outro foi com a obra de Jacques Rancière e suas discussões sobre a historicidade da literatura. A partir deles, fui levada a transformar Machado de Assis não em fonte, mas em objeto de pesquisa. Assim, procurei compreender a concepção de história que estava na pena do escritor, mais especificamente o modo como ele pensava a questão do sujeito da história, de quem pode ser considerado responsável pela marcha dos acontecimentos históricos. Qual é a história da escolha do título “Entre ilustres e anônimos”? A escolha do título “Entre ilustres e anônimos” relaciona-se diretamente com a questão central do livro, o problema da concepção de história, mais especificamente do sujeito da história. Atualmente, consideramos que a verdadeira história de uma época não possa ser apreendida se focarmos apenas nos grandes homens do poder, nos reis, nos generais, nos políticos ou nos grandes pensadores. Entendemos que, para se compreender uma sociedade do passado, é preciso conhecer o modo como a maioria das pessoas, quer dizer, as pessoas comuns, os anônimos viveram. Recentemente, vi no Facebook uma charge que mostrava um trono real, no qual estava sentado um rei com a cara contrariada, porque um negro e um índio tinham vindo sentar-se com ele. A legenda dizia: “Mudanças no ensino de história”. Ora, se, em termos da consideração das diferenças étnicas e da questão do ensino, que tem sua dinâmica particular, a charge aborda uma mudança recente, o fato é que a entrada das pessoas comuns na história não data de ontem. E pode-se dizer que, no Brasil, ela foi contemporânea de Machado de Assis. O século XIX foi aquele do nascimento da história, enquanto disciplina, na Europa e também no Brasil. Em nosso país, o marco fundador é a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838. Essa instituição, que continua existindo, colocou-se como objetivo algo que define a história enquanto moderna disciplina científica: coligir documentos e escrever a história a partir do arquivo. Ao mesmo tempo, os praticantes dessa moderna disciplina da história consideravam que apenas os grandes homens – os ilustres – fossem dignos dela. Manuel Duarte Moreira de Azevedo, que escreveu várias memórias históricas na “Revista do IHGB”, tem esta imagem que me parece muito significativa. Ele diz que o historiador passeia em um cemitério, nele interessando-se apenas pelas tumbas dos grandes personagens. Os outros, os anônimos, esses não seriam merecedores da atenção da palavra eternizadora da história, cabendo-lhe apenas o mergulho no Lete, o mítico rio do esquecimento. Acontece que essa divisão entre ilustres dignos de memória e anônimos condenados ao esquecimento será contestada, e contestada, em primeiro lugar, não por um historiador, mas por Machado de Assis. Assim, o tema do livro é justamente a emergência de um questionamento quanto à exclusividade concedida, na história, aos homens ilustres; a afirmação de que, nela, deve haver lugar também para os anônimos. Um questionamento e uma reivindicação que apareceram na literatura, em primeiro lugar, e não no próprio campo da história. Acredita que o ceticismo de Machado de Assis em relação ao progresso possa ter relação com as suas experiências em vida? Sua questão relaciona-se a um problema muito central na história da literatura: a da relação entre vida e obra. Foi no século XIX que se passou a tomar a obra como modo de conhecer a vida e as opiniões de um escritor. Isso se fez especialmente no caso de escritores sobre os quais se sabia muito pouco – e continuar a se fazer, como para Shakespeare, por exemplo –, mas se estabeleceu também a perspectiva inversa: a de tomar a vida, para explicar a obra. No caso de Machado de Assis, temos, no início do século XX, um livro como “Machado de Assis: o homem e a obra: os personagens explicam o autor” (1939), de Mário Mattos, fundado naquele primeiro modo de se conceber a relação entre vida e obra. A ideia, aqui, é a de que os personagens machadianos seriam alter egos do próprio escritor, que exprimiriam suas opiniões, sua visão de mundo. Assim, o ceticismo e a ironia de um Brás Cubas ou o “tédio à controvérsia” de um conselheiro Aires, por exemplo, deveriam ser colocados na conta do próprio Machado de Assis. Na década de 1960, a teoria literária fez uma dura crítica desse tipo de leitura, defendendo que a análise tomasse por objeto unicamente o texto literário, em relação com outros textos ou discursos, sem procurar fazer dele um reflexo da realidade ou da vida de seu autor. No âmbito da crítica machadiana, análises simplistas como a de Mário Mattos ficaram para trás, mas permaneceu uma singular maneira de se associar a vida e a obra do escritor, especialmente no campo da chamada crítica nacional, que defende a ideia de que Machado de Assis usou sua literatura para representar o Brasil, construir uma imagem do Brasil. Mesmo em críticos com análises sofisticadas, como é o caso de Roberto Schwarz, para quem não se deve tomar a literatura como mero reflexo da realidade, essa associação permaneceu. Assim, no início de sua análise sobre os romances machadianos da década de 1870, ele inseriu uma nota de rodapé na qual aproxima sua interpretação daquela, de natureza biográfica, efetuada por Lúcia Miguel Pereira. Ele quer dizer com isso que, se Machado de Assis escreveu romances cujas protagonistas são mulheres pobres dependentes, como Guiomar, Helena, Stela ou Iaiá Garcia, isso se explica também por que ele próprio era alguém nessa condição. Do mesmo modo, Sidney Chalhoub defende que a visão machadiana da escravidão, expressa em seus textos literários, deve ser explicada à luz de sua atuação como funcionário do Ministério da Agricultura, encarregado da aplicação da Lei do Ventre Livre. Particularmente, minha opção foi por não adotar essa chave explicativa. Defendo que, na literatura de Machado de Assis, produz-se o questionamento de uma certa concepção de história, que exclui os anônimos, que concede apenas aos ilustres a prerrogativa de figurar na cena da história. Sustento que o que estava em jogo aí era um compromisso com a própria noção moderna de literatura, que Machado de Assis assumiu mais do que nenhum outro escritor brasileiro de sua época, recusando a subordinação ao paradigma nacional. Para ele, a literatura brasileira não era obrigada, para se provar como independente da literatura portuguesa, a tratar apenas de temas que seriam inequivocamente nossos: o índio, a natureza americana, os costumes das diversas regiões do País etc. Não foi por outra razão que durante muito tempo ele foi acusado de desprezar o Brasil. A literatura que ele fez tinha esse compromisso com uma liberdade que nasceu apenas com a concepção moderna de literatura: a liberdade para falar de qualquer tema. Ora, “falar de qualquer tema” significou transformar as pessoas comuns, os anônimos, em objeto do registro literário – o que não era o caso, até o século XVIII. Assim, a concepção de história de Machado de Assis é coerente com sua concepção de literatura: em ambas, afirma-se o direito dos homens infames (isto é, sem fama) ao registro escrito – registro literário e registro histórico. Considerando a atuação política de Machado de Assis e o atual cenário na política brasileira, na sua opinião, qual seria a posição que Assis tomaria em relação aos últimos acontecimentos? Quando se trata da opinião de Machado de Assis sobre a atualidade política, as crônicas são certamente a melhor fonte. E, em relação a elas, é interessante perceber como o escritor mudou de tom e de estilo, ao longo dos anos. Na década de 1860, em séries como “Comentários da Semana” (1861-1862) ou “Ao Acaso” (1864-1865), ambas do “Diário do Rio de Janeiro”, Machado de Assis adotou um tom de indignação estridente, que beirou o moralismo. Nos textos de finais da década de 1870 e, especialmente, naqueles da década de 1880 e 1890, como são os da série que analisei, no livro “A Semana” ele preferiu se servir da ironia, do sarcasmo, do questionamento aparentemente imparcial, mas perturbador, para falar de nossas mazelas políticas. Assim, se fosse cronista de um grande jornal brasileiro, hoje, Machado de Assis certamente não deixaria de focalizar essa verdadeira comédia, ou tragédia, política que estamos vivendo, tão repleta de incoerências. Mas o faria, claro, ao modo escarninho que se tornou o seu e que pode ser desorientador, não sendo, contudo, menos poderoso, em termos de crítica. Assim, não duvido nada de que essa frase associada aos protestos pró-impeachment – “Corruptos, mas íntegros” – se tornasse objeto de um de seus textos, em que ele se detivesse sobre a verdadeira revolução gramatical ou semântica em jogo aí, posta ao serviço de uma causa tão flagrantemente antirrevolucionária: manter tudo como está, e como quase sempre foi, na política brasileira. Qual foi a maior dificuldade em relação às pesquisas realizadas? O tema do livro é a concepção de história de Machado de Assis, pensada em relação à concepção de história dos historiadores do século XIX. Assim, eu tive de lidar, por um lado, com os textos machadianos e, por outro, com os dos historiadores oitocentistas. A parte da obra de Machado de Assis que me interessava – textos de crítica e as crônicas da década de 1890 – estavam felizmente disponíveis na edição das “Obras completas de Machado de Assis”, da Jackson, ainda da década de 1950. A edição mais conhecida, e mais recente, da “Obra completa de Machado de Assis”, da Nova Aguilar, não trazia, naquele momento, a integralidade das crônicas, apenas uma seleção delas. Então, quanto à literatura de Machado de Assis, não tive muitos problemas. A questão muda de figura em relação aos textos dos historiadores. Uma das maiores dificuldades que tive foi o acesso à coleção completa da “Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”, no período entre 1839 e 1908, que é o recorte da investigação. As pesquisas que estão na origem desse livro foram realizadas em 2008 e 2009, portanto, em um momento em que havia pouquíssima documentação digitalizada no Brasil. E como temos um problema seríssimo no País, que é o da raridade de boas bibliotecas, o acesso àquela coleção não foi tão fácil. Em Goiânia, onde eu morava e estava fazendo o mestrado, a única instituição que tinha alguma coisa era a Biblioteca Central da Universidade Federal de Goiás, mas, mesmo assim, eram pouquíssimos exemplares, não mais de dez para um período em que o IHGB publicara dois números por ano, ao longo de setenta anos. Atualmente, a BC-UFG não tem sequer esses dez exemplares, segundo o costume, infelizmente típico de nossos bibliotecários, de considerar que os livros sejam descartáveis, uma vez que haja edições digitalizadas e disponíveis on-line. Então, eu tive de ir a Brasília, pesquisar na Biblioteca Central da Universidade de Brasília, que, ela sim, contava com a coleção praticamente completa. Para alguns números que faltavam, pesquisei na Biblioteca do Senado e na Biblioteca da Câmara dos Deputados. Mas, então, eram viagens de pesquisa de não mais de dez dias, ao longo dos quais eu deveria apenas pré-selecionar o material que pudesse me interessar e mandar fotocopiá-lo, para ler depois. Assim, eu voltava para casa com aqueles quilos e mais quilos de material, que todo historiador conhece bem, e que ainda atravanca uma das estantes domésticas – porque, afinal, mesmo que atualmente toda a coleção da RIHGB esteja disponível on-line, todo historiador também sabe, segundo a lição de Roger Chartier, que a leitura de um livro físico e a leitura de sua versão digital não são equivalentes. Ao longo da revisão do texto para publicação, voltei diversas vezes a essas fotocópias – e fiquei contente de ainda tê-las comigo. |